Os sentidos vão sendo despertados desde o primeiro instante em que entramos no forte e olhamos o vale à frente, e os outros montes, qual muralha, à esquerda e à direita da nossa posição.
Junto ao que resta do parapeito de 2m, entre as canhoneiras onde já não estão os canhões, podíamos subir para a banqueta e assumir a nossa posição de disparo sobre o parapeito. Inspiramos fundo e o ar fresco é bem diferente do que seria há 200 anos. Nuvens de fumo denso dos disparos da artilharia iriam cegar-nos, a garganta seca ficaria ainda mais áspera e, assim que rasgarmos com os dentes a ponta do cartucho e depositarmos uma parte da pólvora na caçoleta e o restante pela boca do mosquete, ficamos com o sabor salgado e forte da pólvora entranhado. Três disparos num minuto e ardem os olhos, o rosto fica enegrecido e com queimaduras das muitas faíscas que saltam. O tambor dá o toque de recarregar, o oficial inglês grita “PRIME AND LOAD!”. Avança contra nós a coluna francesa, baionetas apontadas e em Pas de Charge. Os tambores calam-se e ouve-se o grito que ecoou vitorioso por toda a Europa: “VIVE L’IMPEREUR!” Nós respondemos instintivamente a plenos pulmões “PORTUGAAAAAAL! Abafa-os a valentia que ressoa por toda a guarnição de 250 homens. “MAKE READY!” Grita o sargento. Está armado! “PRESENT!” Está apontado! O silêncio e os artilheiros a carregar! Mas eles cantam?! Os franceses vêm a cantar! “FIRMES!”, gritam os oficiais portugueses! 30 passos… 25 passos.. já lhes vemos o branco dos olhos e as ganas de cá chegar acima! “FIRE!” Olhos fechados, o coice da arma, o Manel moleiro que cai morto ao vosso lado e o estrondo das nossas 4 peças de calibre 9. Tudo ao mesmo tempo! Que razia! A coluna grita, contorce-se com a carnificina da granada Shrapnel. Explode por cima dos homens, espalha esferas que abrem clareiras entre os uniformes azuis e brancos manchados de vermelho. O treino dos nossos 5 artilheiros por cada peça, conseguem uns mortíferos 6 disparos por minuto. Eles que venham cá acima! Já fogem!
Uma visita guiada a um forte podia começar assim. Cada visita, cada discurso é diferente. A exposição do Guia-Intérprete Oficial apela aos sentidos, invoca factos e vivências. Baseia-se no rigor histórico, na investigação e no estudo do terreno.
Porém, desengane-se quem acha que o trabalho do guia se reduz ao domínio da história. No desempenho da nossa profissão, desenvolvemos a análise e a correcta reacção ao comportamento dos indivíduos, garantimos a operacionalidade do Tour e controlamos o esforço do grupo. Através de dinâmicas, promovemos a participação e o interesse. Gerimos as expectativas, as motivações e as frustrações das pessoas. Este trabalho técnico resulta do treino e da formação específica onde ganhamos consciência do efeito catalisador do Guia-Intérprete.
Guiar nas Linhas de Torres é uma experiência transversal e abordamos temas como: botânica, geologia, fósseis, fauna, avifauna, história militar, tradições. O vocabulário técnico nas várias línguas é dominado e explicado, adequando a informação e o discurso. A visita às Linhas com os mais jovens é apaixonante e surgem as questões mais extraordinárias.
As visitas são sempre um desenrolar de histórias paralelas à história. Pessoas que no estrangeiro dedicaram longos anos de estudo à Guerra Peninsular, ou os que vêm venerar estes locais plenos de significado familiar. -“Aqui na Roleia [Roliça] combateu um antepassado meu! E combateu na Batalha de Vimiera [Vimeiro] também! “. Assumi a missão de reencontrar e divulgar a memória das Linhas e das gentes que aqui combateram.
Um facto curioso: Conhece a música “Eu perdi o Dó da minha guitarra..”? É uma canção que tem origem na marcha militar napoleónica La chanson de L’oignon onde o “É bom camarada! É bom camarada! É bom! É bom! É bom!”, era gritado pelos franceses no Passo de Carga, o Pas de Charge. «Au pas camarade! Au pas camarade! Au pas! Au pas! Au pas!».
Era esta a canção que a coluna vinha a cantar quando nos atacava.
No final desafinaram.
(Artigo publicado na revista "Itinerante")